Período Patriarcal: Folclore judeu ou fonte histórica confiável?

quinta-feira, 20 de novembro de 2008


Na sua infância, você provavelmente brincou de telefone sem fio. E deve ter rido, como todos, ao descobrir que aquilo que havia ouvido e passado para frente não tinha quase nenhuma relação com a palavra inicial da brincadeira. Quando recebemos uma mensagem que passou por muitos interlocutores até chegar a nós, a tendência natural é questionarmos a sua veracidade. Numa aula que tive num curso de extensão em Egiptologia na USP, o professor comparou, ironicamente, o Antigo Testamento da Bíblia com esta diversão de criança. A metáfora parece clara. Para ele, o relato bíblico atual, resultado de diversas cópias feitas ao longo dos séculos, não poderia refletir com muito grau de certeza o que saiu da mente dos autores bíblicos.
Esta opinião também é compartilhada por muitos historiadores e teólogos. Alguns estudiosos como Donald Redford, John Van Seters, Thomas L. Thompson, afirmam que os relatos dos patriarcas, descendentes diretos de Noé e antecessores do povo judeu, são criações fictícias produzidas em tempo muito posterior do que o reivindicado pelos defensores da Bíblia. Logo, não possuiria valor histórico.
Philip Davies, acadêmico da Universidade de Sheffield, Inglaterra, costuma fazer declarações mais ousadas. Sua opinião é que as histórias (estórias) patriarcais foram escritas no período persa (4º século a.C.), ou até no período grego (3º século a.C). Como confiar num texto escrito mais de 1.500 anos depois do seu conteúdo narrado? Estes relatos são meras lembranças historicamente editadas ou documentos fidedignos?
Pegadas de camelos
Um dos argumentos prediletos dos defensores da composição das narrativas patriarcais entre os 6º e 3º séculos a.C é a menção de camelos nas histórias de Abraão, Isaque e Jacó (Gênesis 12:46; 24:10-11; 31:17). Segundo eles, apenas no período babilônico ou persa, entre o 6º e o 5 século a.C., o uso e a domesticação de camelos foi conhecido no antigo Oriente Médio.
Porém, a arqueologia tem descoberto diversos documentos que mencionam a existência e domesticação deste animal no terceiro e principalmente no segundo milênio a.C., a época em que o escritor bíblico situa a existência dos patriarcas.
Um texto sumeriano, por exemplo, do ano 2.000 a.C. foi encontrado em Nippur, na Mesopotâmia. O conteúdo do documento fala sobre o uso do leite da fêmea desta espécie. Vale lembrar que para se obter leite de um animal é necessário que ele seja domesticado.
Em Byblos, na antiga Síria, foi descoberta uma figura incompleta de um camelo ajoelhado datada entre o 19º e 18º séculos a.C. Outra descoberta envolve um dicionário mesopotâmico que menciona o animal, bem como sua domesticação. A data deste documento é provavelmente entre 2.000 e 1.700 a.C.
Randall Younker, arqueólogo da Universidade Andrews, Michigan (EUA), pôde ver em Assuã, no Egito, um desenho esculpido na rocha de um homem guiando um camelo por uma corda. A inscrição ao lado do desenho sugere a data de 2.300 a.C.
Finalmente, as escavações nas ruínas de Ur dos caldeus, cidade de Abraão, trouxe à tona uma representação em ouro de um camelo ajoelhado. Este objeto foi fabricado no período da 3ª dinastia (2.050 a.C.) desta importante cidade no passado. Diante dessas evidências, parece não ser muito incoerente ver a domesticação de camelos como uma técnica que remonta ao 3º e 2º milênio a.C.
Vestígios nos nomes
Assim como na língua portuguesa, a cultura do Oriente Médio também apresenta alguns nomes que, comuns no passado, caem em desuso com o passar dos anos. Vejamos alguns exemplos. Terá, o nome do pai de Abraão, é comum em textos assírios do fim do 3º milênio a.C. com a grafia Til Turakhi. Abraão, nome de um dos mais importantes personagens da Bíblia, foi encontrado nos tabletes cuneiformes descobertos nas ruínas da cidade de Ebla (ver foto), na Síria. A grafia aba-am-ra-am nos textos de Ebla é bem parecida com o hebraico ‘avraham.
Ya’qub-el, nome de um chefe de um grupo de semitas chamado hicsos, é similar ao nome Jacó (Ya’akov). Este nome foi encontrado num texto do 18º século a.C. em Chagar-Bazar, na Alta Mesopotâmia.
O nome de um dos filhos de Jacó, Benjamin, era comum na língua acadiana em meados dos 2º milênio a.C., com a forma binu-yamin. Aser e Issacar, nomes de outros dois filhos de Jacó, foram encontrados numa lista egípcia do 18º século a.C.
De forma significativa, estes nomes são dificilmente encontrados entre o 6º e 3º séculos a.C., a data que os críticos da Bíblia afirmam que ela foi escrita. Depois do período patriarcal, não encontramos nenhum personagem bíblico chamado Abraão ou Jacó. Mais uma vez a crítica não parece se deparar com mais uma evidência arqueológica.
Marcas na cultura
A descoberta dos mais de 20 mil tabletes da biblioteca da cidade de Nuzi (ver foto), na Mesopotâmia, foi uma contribuição importante para verificar se as narrativas patriarcais eram historicamente confiáveis, uma vez que os textos ali encontrados eram do 3º e 2º milênio a.C. Se as histórias contadas pela Bíblia são verdadeiras, devemos encontrar o mesmo ambiente histórico nestes documentos de Nuzi. Veremos três exemplos a partir destes documentos e como eles foram importantes na compreensão do ambiente bíblico.
Em um destes tabletes há o caso de um casal que não podia ter filhos e conseqüentemente, não tinham com quem deixar a herança da família. Como solução deste problema, havia o costume de se adotar um servo e torná-lo herdeiro das posses do casal que o adotou. Este é o mesmo costume praticado por Abrãao no livro de Gênesis 15:2. Ele e sua esposa não tinham filhos, já que ela era estéril. Sendo assim, o personagem bíblico adotou um dos seus servos, chamado Eliézer.
Porém, de acordo com as leis de Nuzi, se mais tarde o casal tivesse um filho, o herdeiro perderia tal status. Curiosamente, quando nasceu o filho de Abraão e Sara, Isaque, Eliézer, o herdeiro até ali, perdeu seu direito sobre a herança do casal bíblico.
Uma das histórias mais intrigantes do Gênesis é aquela em que Esaú, um dos filhos de Isaque, troca seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas preparado por seu irmão Jacó. Por mais absurda que esta prática possa parecer, os textos de Nuzi a apresentam como um costume bem conhecido na região do antigo Oriente Médio. Em um dos textos, por exemplo, certo homem, Tupkitilla, troca sua herança por três ovelhas do seu irmão.
Em Gênesis 31:19, temos a estranha atitude de Raquel, uma das esposas de Jacó, roubar os ”ídolos do lar“ (ver foto) de seu pai Labão, já que a sua família era monoteísta. Esta passagem só foi entendida após as descobertas dos textos de Nuzi. Em um dos tabletes se encontra a história de um homem chamado Nashwi que adotou um jovem cujo nome era Wullu. O texto diz que quando seu pai adotivo morreu, ele, Wullu, tornou-se proprietário das suas terras, isso porque ele tomou posse dos “ídolos do lar” que lhe pertenciam. Quando Raquel roubou os pequenos ídolos do seu pai, ela se tornou a proprietária das suas terras, essas esculturas eram uma espécie de escritura.
A pergunta que fica é: se a arqueologia tem confirmado muitos costumes descritos na Bíblia, no período em que ela descreve, porque a mensagem que esse livro tão controverso traz não seria digna da mínima confiança? O preconceito deve ficar fora desta resposta!

Luiz Gustavo Assis é formado em Teologia e é capelão do colégio Adventista de Esteio, RS.

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